sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Deixem o meu óculos em paz!

MARCOS BAGNO

É mesmo uma pena que nossos melhores dicionários de referência, o Aurélio e o Houaiss, oscilem entre a tentativa de preservação das prescrições tradicionais e a vontade de incorporar e abonar as formas inovadoras já consagradas no uso do português brasileiro. Digo isso porque, ao tratar do substantivo óculo (s), ambos os dicionários assumem o tom mais prescritivista e autoritário possível, em franca contradição com as análises mais bem feitas que encontramos em outros verbetes: Aurélio. Século XXI: “No Brasil, pelo menos, diz-se, erroneamente, o óculos, este óculos, meu óculos” (verbete óculos). Houaisss: “A palavra óculos é pluralia tantum....sendo, portanto, erro a discordância de número (um óculos) que se tem vulgarizado no português coloquial do Brasil (formas corretas: uns óculos, meus óculos, um par de óculos)” (verbete óculo). Pluralia tantum são as palavras que só são usadas no plural como bodas, anais, costas, férias. Como diria nosso herói! Macunaíma: “Ai, que preguiça!” Por que essa insistência em achar que esse importante dispositivo para melhorar a visão (que eu uso há quarenta anos!) tem que ser considerado como um par ? Por que não chamá-lo então de binóculo, já que também existe o monóculo?O que aconteceu com óculos foi o mesmo que aconteceu com tesouras, cuecas, calças, ceroulas, tenazes, listados pelo dicionário Houaiss no verbete pluralia tantum. Neste verbete, a análise, felizmente, não recorre à imposição do que é “correto” e à condenação do “erro”, sendo, ao contrário, isenta desses preconceitos: pluralia tantum.Rubrica: gramática. Expressão latina com que são referidos os substantivos de uma língua cuja forma é um plural morfológico, mas que semanticamente podem denotar uma única unidade; trata-se sempre os referentes formados de partes simetricamente duplicadas (p. ex: tesouras, cuecas, calças, óculos, ceroulas, tenazes). Uso. Embora o emprego do pl (ural) para indicar uma só parelha seja normal no português, registra-se uma dicotomia de tendência: de um lado, para obviar possíveis ambiguidades e explicar a unidade, o locutor refere-se a um par de tesouras, de alicates, de pinças etc.; de outro, esp(ecialmente) no port(uguês) do Brasil, consuma-se o quase geral emprego do sing (ular) nos mesmos casos: uma tesoura, uma tenaz, a minha calça, a cueca. É uma pena que não se tenha mencionado também o “quase geral emprego do singular” no caso de óculos. A razão do nosso uso de óculos no singular está nessas palavras do verbete: “substantivos cuja forma é um plural morfológico, mas que semanticamente podem denotar uma única unidade’.
Pronto, gente, é semântica! A semântica estuda a relação entre as palavras e as coisas do mundo que elas designam. Se nós concebemos o óculos como uma coisa só, nossa lógica linguística vai querer corresponder à nossa lógica de percepção da realidade: se o objeto é considerado como uma unidade, a palavra que o designa só pode estar no singular!Vamos parar com essa insistência boboca, deixar todo mundo usar seu óculos em paz e cuidar de coisas mais importantes? Por exemplo: somente 8% das escolas com as melhores médias do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) em 2009 eram públicas. Não é perdendo tempo tentando convencer os alunos de que a palavra óculos só pode ser usada no plural que nosso ensino público vai sair do fundo do poço!

Artigo transcrito da revista Caros Amigos, edição de julho de 2009
Jornal de Angatuba, edição 7 de agosto de 2009